Reflexos

Dez anos da cidade seguindo um País em transe e insatisfeito

Jornadas de junho, com ampla repercussão e mobilização em Pelotas, marcaram história e ainda hoje são alvos de análise

Foto: Vinicius Peraça - DP - Em Pelotas, ao menos 12 mil pessoas tomaram as ruas no dia 20 de junho há dez anos - segundo a organização, foram 20 mil

Em junho de 2013, milhões de brasileiros foram às ruas em manifestações generalizadas. A onda de protestos começou ainda em janeiro, em Porto Alegre, contra aumento de passagens de transporte coletivo, e a pauta das tarifas foi ganhando forma até resultar, meses depois, em protestos mais amplos nas principais cidades do País. As jornadas de junho, como se tornaram conhecidas, foram a maior mobilização popular do Brasil no século 21 e podem ser consideradas o primeiro fato político nacional mediado pelas redes sociais.

O clima de mobilização tomou conta e protestos foram organizados em dezenas de cidade, incluindo Pelotas. À medida em que as manifestações se massificavam, o foco se dispersou em diversas pautas, unindo em uma mesma manifestação militantes de todo o espectro político, da extrema-direita à extrema-esquerda.

Em Pelotas, ao menos 12 mil pessoas tomaram as ruas no dia 20 de junho - segundo a organização, foram 20 mil. Nos cartazes, palavras contra a corrupção, contra a Copa de 2014 e pedidos por investimentos em saúde e educação. A cobertura do Diário Popular reportava a profusão de cartazes e a entrega de um documento com nove reivindicações ao então prefeito Eduardo Leite (PSDB), entre elas a licitação do transporte público. No dia, lojas do centro da cidade e instituições de ensino fecharam as portas mais cedo.

​Um segundo protesto na cidade foi convocado para o dia 26 de junho. Com 14 mil pessoas, segundo os organizadores, a manifestação teve clima tenso, com manifestantes feridos, danos materiais e princípios de confronto entre polícia e participantes. No dia 11 de julho, os manifestantes foram às ruas de Pelotas uma terceira vez, mas com bem menos pessoas e protestos espalhados por diversas áreas.

Complexidades das ruas
A doutora em Ciência Política e professora da UFPel Rosângela Schulz explica que as manifestações de 2013 vieram dentro de um contexto de mobilização global, citando a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street, embora cada um desses eventos tenha suas particularidades locais. Ela divide as manifestações de junho de 2013 em dois momentos. Um primeiro em torno do passe livre e um segundo em que se perdeu o foco de pauta única. "Temas que passam a ser colocados nas ruas em cartazes distintos, quase que todo mundo põe suas pautas específicas pra esse momento", diz.

Rosângela explica que as manifestações levaram às ruas um público heterogêneo, sem pauta que unificasse. "Quando as pautas não são focadas, tende a ter uma disputa de apropriação, que é um pouco do que aconteceu", aponta, dizendo que uma pauta vaga anticorrupção acabou dominando o tom das manifestações. "Quem absorve, quem consegue fazer uso das manifestações é muito mais à direita e a extrema-direita do que os outros campos."

A professora considera que os atos foram um termômetro e deram abertura à ascensão de movimentos políticos de extrema-direita, não havendo crise econômica que motivasse uma revolta popular. Rosângela também associa o clima à Operação Lava-Jato. "Nos dois momentos, tu tens um questionamento do campo político muito forte e isso traz a possibilidade de fazer essa ruptura.

Luis Alexandre Alves é jornalista e doutorando em Ciência Política pela UFPel. À época das manifestações, era coordenador do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFPel e participou dos atos em Pelotas. Hoje, pesquisa midiativismo com base em junho de 2013. "A gente foi para a rua meio que sem entender o que estava acontecendo. Naquele momento, como ativista, era 'se todo mundo está indo para a rua, a gente em que ir também'", diz.

Alves avalia que o acontecimento foi uma jornada de protestos complexa. "É difícil entender se junho de 2013 acabou, se as consequências daquele momento acabaram. Com a volta de um governo do PT, se surgirem alguns protestos relembrando junho de 2013, tudo que aconteceu que é determinante para o impeachment da presidente Dilma na época [em 2016], a gente vai dizer que junho de 2013 não acabou", considera. "É notável como esse discurso antigoverno e antissistema surge a partir de 2013 e a partir dali ele só decola."

Para Alves, o que massificou os protestos em todo o Brasil foi o apoio de grandes veículos de comunicação. "A grande mídia olha esses protestos, de alguma maneira sendo rechaçada, porque se tem jornalistas agredidos, inclusive pela polícia, e vê que pode usar esses protestos para alguma coisa. A grande mídia praticamente se apropria desses protestos e faz um direcionamento com esse discurso antigoverno, antissistema", avalia.

Lições das ruas
A publicitária Roberta Osandabaraz foi uma das organizadoras das manifestações em Pelotas. "Na época eu tinha ideais um pouco diferentes dos que tenho hoje, mais voltados à direita, e eu estava num momento em que achei que era relevante Pelotas fazer parte disso." Hoje, tem visão mais crítica sobre as jornadas de junho. "Colaborou muito para essa polarização que a gente tem hoje tão exacerbada, na minha percepção ainda pior."

Tony Sechi era um dos coordenadores do DCE da UFPel na época. Segundo ele, as manifestações saíram de controle, sem uma pauta local, e não havia coesão entre as entidades que foram às ruas. "A gente acabou indo se somar porque foi uma coisa espontânea. Inclusive, muito estranho, porque se a gente for separar as pessoas que estavam na época, era uma extrema-esquerda, mas também uma extrema-direita, era uma coisa bem misturada."

Há dez anos, a cientista política Mariele Domingues e o tatuador Thomaz Jacondino foram às ruas de Pelotas com a filha Alice, então com cinco meses. "Foi extremamente importante, até para a nossa construção como militantes e como pessoas", diz Thomaz. "Eu já era uma apaixonada pela política, mas acho que foi a partir dali que eu percebi a real importância que ela tinha nas nossas vidas e o quanto eu gostaria de estar atuando", compartilha Mariele.

O casal não considera, no entanto, que as manifestações de 2013 tenham sido base para o crescimento da direita na política. "Tentam nos incutir isso e propagar para nos afastar da rua, nos afastar de querer outras mudanças e manter as pessoas mobilizadas na rua", diz Thomaz.

Mariele e Thomaz foram às ruas com a filha de cinco meses / fotos: William Martins / Carlos Queiroz - DP

Dez anos depois, com Alice um pouco mais crescida, o legado passado para a filha é da importância do envolvimento político. "Ela é um ser político, ela é a geração das jornadas de junho. Tem essa compreensão, mesmo muito pequena, de todos esses problemas que a gente precisa enfrentar, na concepção dela, sobretudo, dos problemas relacionados ao meio ambiente", compartilha Mariele.​

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